A Morte da Luz – George R. R. Martin

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A Morte da Luz é o primeiro romance escrito por George R. R. Martin, publicado em 1977 e indicado para os prêmios Hugo, Nebula e British Fantasy. George R. R. Martin ficou conhecido após o blockbuster Game of Thrones, um dos maiores sucessos editoriais dos últimos tempos, mas em seu livro de estreia já podemos ter uma boa ideia de seu talento como romancista.

É um livro interessante, um romance de ficção científica complexo que lembra muito o estilo dos romances de C. J. Cherryh, ou Jack Vance, escritores famosos da velha guarda.

Ele descreve a história de Worlon, um mundo errante (perdido entre estrelas, não orbita uma estrela específica) e sem vida, que por um breve momento passa por um sistema estelar completamente espetacular, com uma gigante vermelha conhecida como Satã Gordo e várias estrelas menores que o orbitam conhecidas como círculo de fogo.

Vários planetas da borda da galáxia participaram de um esforço de terraformação e construção de 14 cidades, uma para cada planeta colonizador, o que ficou conhecido como festival, uma extravagante demonstração de poder e tecnologia desses mundos. A história do livro acontece quando Worlon já está se afastando em sua órbita hiperbólica desse sistema estelar magnífico, restando apenas poucos habitantes nessas cidades, verdadeiros fantasmas que se recusaram a deixar o planeta moribundo.
Dirk t’Larien é um chamado a este mundo por sua antiga amante Gwen, com esperança de reconquistá-la, para só depois de chegar descobrir que muita coisa mudou e ter que lidar com as antigas e violentas tradições de um dos planetas colonizadores, Kavalar.

A força de George Martin como construtor de mundos e contador de estórias está com força total neste livro. O universo que ele criou é gigantesco, rico e muito mais complexo que o planeta Worlon, apesar de toda ação acontecer ali. Ele pensou em toda história que levou à expansão da humanidade pela galáxia, guerras, evolução de culturas isoladas, criando vários mundos que renderiam livros fantásticos… Será que um dia George Martin pensou em retomar essas histórias? Infelizmente acho isso extremamente improvável de acontecer, considerando a dificuldade que ele tem encontrado em concluir a saga Game of Thrones, o que diria então de retomar esse universo abandonado a décadas.

Mas de qualquer forma esse livro é uma excelente demonstração de sua capacidade de criar histórias repletas de romance e mistério que são muito prazerosas ao leitor.

Ele faz uma descrição complexa cultura violenta dos kavalarianos, presa em códigos rigorosos de honra, que nos lembra um pouco da cultura cavaleiresca medieval que veremos mais tarde em Game of Thrones, ao mesmo tempo em que fez um estudo sobre a misoginia e xenofobia dessa cultura.

Infelizmente o livro termina de uma forma um pouco abrupta, com um anti-clímax e sem uma resolução clara, mas apesar de um pouco decepcionante o final mostra que o autor possui muita integridade e visão clara de construção de mundos.

Eu gostei muito do livro, apesar de ficar com aquela impressão de que muito ficou de fora, e gostaria muito que ele reconsiderasse voltar a escrever ficção científica retomando esse universo da história de Worlon, mas considerando a velocidade em que vem escrevendo Game of Thrones não tenho muitas esperanças disso acontecer.

Esse livrou foi uma grata surpresa, pois descobri que para George R. R. Martin a ficção científica claramente foi o primeiro interesse desse grande autor.

Falling Free – Lois McMaster Bujold

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Ficha Técnica do Livro

  1. Título: Falling Free
  2. Nome do autor: Lois McMaster Bujold
  3. Nome da editora: Baen Books
  4. Data e local de publicação: EUA, 1988;
  5. Número de páginas: 307 páginas;
  6. Tradução para o português: Não foi traduzido
  7. Gênero: Ficção Científica;
  8. Nota: ★★★★ (4)

Falling Free (Queda Livre) é um romance de ficção científica escrito em 1988 pela autora norte americana Lois McMaster Bujold e vencedor do Prêmio Nebula do mesmo ano. É o quarto livro da saga Vorkosigan, mas o primeiro na escala cronológica dos livros de Bujold. O próximo livro na minha lista de leitura seria The Vor Game, o vencedor de 1991, mas como esse livro é o sexto livro da saga Vorkosigan, e como nunca tinha lido nada de Bujold, achei melhor começar lendo o primeiro livro (na escala cronológica interna) para ter uma ideia melhor do material com que iria lidar. Fiz o mesmo com Sundiver antes de ler Maré Alta Estelar, e confesso que estava cético se isso não acabaria se mostrando desnecessário ou até uma perda de tempo. Para minha surpresa Bujold revelou-se uma autora de ficção científica extremamente competente, superando em qualidade estilística e em vários outros aspectos autores como David Brin ou Kim Stanley Robinson. Antes de partir para a análise do livro, faço uma introdução sobre o universo criado por Bujold.

A Saga Vorkosigan 

É uma série de livros de ficção científica e contos situados em um universo ficcional criado pela autora Lois McMaster Bujold. O primeiro livro foi publicado em 1986 e o mais recente em 2012. Os livros da série já receberam vários prêmios e nomeações, incluindo três vencedores do Prêmio Hugo.
O estilo empregado por Bujold varia muito, algumas vezes misturando gêneros como thriller político, romance, aventura militar e mistério.
A autora utiliza personagens masculinos, femininos ou homossexuais com pontos de vistas variados, mas algumas das preocupações constantes na série são: a ética médica, identidade pessoal (particularmente o papel da fisiologia na determinação da personalidade). Dentro do contexto empregado, a autora mostra como a identidade pode ser afetada pela bioengenharia, manipulação genética, clonagem e tecnologia médica na substituição de órgãos e no prolongamento da vida. Algumas histórias exploram temas como criação de crianças, formação de casais e até atividades sexuais.
Várias formas de sociedade e governos apresentados por Bujold refletem a política do século vinte, mas a autora também mostra contrastes entre a sociedade tecnológica e igualitária de Beta Colony e a sociedade heróica, militar e hierárquica dos Barrayar. Miles Vorkosigan, o personagem principal na série é filho de uma mulher de Beta e de um aristocrata Barrayano, personificando o contraste entre essas sociedades.

Assim como na série Fundação, de Isaac Asimov, no universo criado por Bujold a nossa galáxia foi colonizada pelos seres humanos sem terem que competir com outras espécies inteligentes. A primeira colônia bem sucedida é Beta. Desde pelo menos 400 anos antes dos eventos de Falling Free (o primeiro livro na escala cronológica interna) dezenas de planetas abrigam culturas que evoluem de forma divergente.

A viagem entre os sistemas estelares é possível graças aos wormholes (buracos de vermes) que são anomalias espaciais que permitem saltos instantâneos entre distâncias enormes da galáxia, organizados em um sistema conhecido como Nexus. O Nexus contêm várias estações espaciais militares ou comerciais e portos para suporte  às naves espaciais. As estações podem ser de propriedade de governos planetários, de organizações comerciais ou até mesmo independentes como o Sindicato dos Quaddies ou a Estação Kline.

A única forma de atravessar os wormholes é utilizando pilotos com implantes cerebrais que permitem que eles dobrem as três dimensões normais do espaço em cinco, através da matemática pentadimensional (five-space math) e as naves possuem geradores de campo Necklin para isso.

A maioria dos sistemas estelares colonizados possuem pelo menos um planeta habitável, e na maioria das vezes com um único governo. Existem também impérios como os dos Barrayar e Cetaganda, formados pela conquista de outros mundos nas vizinhanças de seu wormhole.

Cordelia Naismith é a capitã de uma nave a serviço do Serviço de Pesquisa Betano cuja tarefa é explorar sistemas desconhecidos em busca de planetas habitáveis (Shards of Honor, o segundo livro na escala cronológica).

 As estações espaciais do passado (200 anos antes dos eventos de Shards of Honor) usavam força centrífuga para gerar efeito artificial de gravidade, mas as modernas contam com sistemas de geração artificial de gravidade. A gravidade artificial também é utilizada para proteger passageiros de naves espaciais de grandes acelerações.

 Os ambientes habitados pelos humanos através do Nexus são os mais variados possíveis. Em alguns planetas como Barrayar e Sergyar a gravidade e atmosfera são semelhantes às da Terra, e existem grandes suprimentos de água. Em outros como Beta Colony e Komarr, só é possível viver em cidades protegidas por domos ou em arcologias (cidades autossustentáveis e com controle de atmosfera e clima). Em todas lugares colonizados a forma predominante de vida botânica é a terrena, sendo que nos planetas onde foi necessária a terraformação esta foi conduzida com a destruição da vida nativa e imposição das formas terrenas. O fornecimento de alimentos é feito principalmente através de culturas hidropônicas em larga escala ou piscicultura. Em habitats espaciais, como os dos quaddies de Falling Free, é necessário lidar com a questão do isolamento do ecossistema e o risco de contaminação microbiana.

Um aspecto muito importante na Saga Vorkosigan é a tecnologia médica e genética, capaz de produzir qualquer tipo de clone ou de seres híbridos. A manipulação do genoma humano e o uso dos “replicadores uterinos” permite criação de embriões e fetos e desenvolvimento de novos tipos de seres humanos, o que abre um interessante campo para a discussão ética sobre manipulação genética e reprodução in-vitro, um tema bastante atual nos nossos dias. A manipulação genética produziu entre os Betanos o aumento da expectativa de vida para mais de 120 anos, e nos Cetagandanos além da expectativa de vida foi prolongada também a juventude. É possível também o transplante de cérebros de pessoas idosas em corpos jovens clonados. A criogenia é coisa rotineira e acessível.

A bioengenharia apresentada mostra bactérias e animais produzidos com propósitos específicos (como os butterbugs, insetos que são considerados o alimento perfeito e definitivo para a humanidade), e até mesmo alterações em seres humanos, como os quaddies que foram projetados como trabalhadores perfeitos para ambientes espaciais. A manipulação genética e o medo de mutações é mais forte na sociedade Barrayarana, mas as corporações e empresas não se preocupam muito com essas questões éticas.

Apesar do Nexus permitir uma galáxia interligada por viagens e comércio, paradoxalmente Bujold imaginou que a comunicação seria mais lenta e difícil do que nos nossos dias. Como consequência disso cada planeta colonizado funciona como uma espécie de Placa de Petri em que as culturas humanas  — derivadas das culturas que conhecemos da história da Terra — evoluem de forma drasticamente diferentes. Os mundos de Barrayar e Athos, por exemplo, mostram aspectos da Europa e América da nossa época pré-industrial, o Império Cetagandan são altamente aperfeiçoados geneticamente, e os quaddies praticam uma espécie de comunalismo. Todas essas diferenças são usadas por Bujold para explorar e satirizar aspectos próprios das nossas sociedades.

 A história de Falling Free

Agora que fizemos uma introdução ao universo da saga Vorkosigan, vamos a uma breve introdução ao roteiro de Falling Free.
A história começa cerca de 200 anos antes do nascimento de Miles Vorkosigan, o protagonista da maior parte dos livros da série, descrevendo a criação dos “Quaddies” (imagino que uma possível tradução para o termo seria “quatrinhos”). Os Quaddies são seres humanos modificados geneticamente para uma melhor adaptação ao ambiente de gravidade zero (ou queda livre, quando em órbita). A principal mudança introduzida foi a transformação das pernas em outro par de braços. Criados com o objetivo de fornecer mão de obra barata e extremamente especializada para o ambiente espacial, eles são praticamente inúteis no mais leve campo gravitacional ou “no lado de baixo”, como é descrita a superfície de planetas. Além dos membros alterados, eles também sofreram grandes alterações metabólicas que praticamente eliminaram os efeitos nocivos da ausência de gravidade no corpo humano, como degeneração óssea e deterioração muscular.

Os Quaddies são propriedade da companhia que os criou, dependendo completamente desta para viver, sequer sendo considerados seres humanos.
Legalmente os Quaddies enquadram-se na categoria de “tecidos pós-fetais cultivados experimentalmente”, então a companhia não tem escrúpulos em tratá-los como escravos. O acesso à informação do mundo externo é fortemente controlado, até mesmo as crianças apenas ouvem histórias que envolvem trabalho no espaço. Eles não tem liberdade para reproduzir-se livremente, sendo submetidos à um programa de procriação controlada.

Leo Graf é um professor de soldagens em ambiente de gravidade zero, que foi designado como instrutor dos Quaddies, e rapidamente solidariza-se com a situação dos escravos.
Quando uma nova tecnologia de geração artificial de gravidade subitamente torna os Quaddies obsoletos, a companhia decide livrar-se do incômodo, então Leo Graf decide ajudá-los a fugir para um sistema estelar distante.

Falling Free é um livro muito divertido e de leitura fácil. Escrito de forma muito competente por Bujold, é o primeiro livro de uma saga que traz um novo frescor ao universo da ficção científica.

Cyteen – C. J. Cherryh

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Ficha Técnica do Livro

  1. Título: Cyteen
  2. Nome do autor: C. J. Cherryh
  3. Nome da editora: Aspect (Reedição 1995)
  4. Data e local de publicação: EUA, 1988;
  5. Número de páginas: 696 páginas;
  6. Gênero: Ficção Científica;
  7. Nota: ★★ (2)

Cyteen é um romance de ficção científica escrito por C. J. Cherryh em 1988 e vencedor dos prêmios Hugo e Locus de 1989. A história situa-se no universo Aliança-União criado por Cherryh que é recorrente em seus livros de ficção científica. Cyteen foi fundado em 2201 por um grupo de cientistas e engenheiros dissidentes, incluindo o planeta Cyteen e as estações espaciais interiores e exteriores ao planeta. A independência de Cyteen veio em 2300, e agora serve como a capital da União.
A atmosfera do planeta é moderadamente tóxica aos seres humanos, que precisam viver em cidades semi-encapsuladas, conhecidas como enclaves ou cidades-estado.
Em face à necessidade de expansão das colônias da União, uma instituição científica conhecida como Reseune centraliza toda pesquisa e desenvolvimento de clonagem humana, recurso que é deplorado pela Terra e a Aliança, principais rivais da União.
Em Reseune são criados os humanos incubados in vitro “azi”, e os “CIT”. A principal diferença entre os azi e os CIT é que os azi são educados desde o nascimento via “fita”, uma combinação controlada por computadores de técnicas de condicionamento e treinamento por biofeedback. A técnica também é utilizada nos CIT, mas em escala muito menor, para educação, mas normalmente apenas depois dos seis anos de idade. O resultado é uma profunda diferença entre esses dois tipos de clones. Enquanto os CIT tem melhores capacidades de lidar com situações inesperadas e incertas, os azi são capazes de melhor concentração em problemas específicos. Como efeito colateral da educação por “fitas” os azi tendem a serem emocionalmente instáveis.

Análise de Cyteen

É perfeitamente aceitável escrever lixo – desde que você edite ele brilhantemente.

C. J. Cherryh

Eu venho lendo os vencedores do Prêmio Hugo em sequência, conforme é possível acompanhar através deste post. A experiência é recompensadora, mas nem sempre é fácil, pois as vezes encontramos livros que não foram traduzidos para o português, que são grandes demais (é o caso de Cyteen, com quase 700 páginas), ou até mesmo possuem uma linguagem e estrutura complicada demais (como Stand in Zanzibar).
Assim como o livro anterior de Cherryh que também recebeu o Hugo, Downbelow Station, também não recomendo a leitura deste livro. Não que o livro seja ruim, apenas considero que possui alguns problemas que desestimulam até os leitores mais fiéis ao gênero:

  1. O livro é longo demais. Isso não seria um problema se estivéssemos diante de um livro com um estilo mais rico e envolvente como os livros de Gene Wolfe, que merecem a leitura no idioma original, e não assustam pelo tamanho. Mas Cyteen realmente não precisava ser tão grande, se ele fosse enxugado pela metade ainda sobraria muito espaço para o desenvolvimento da história.
  2. Existem muitos personagens. Contei mais de vinte personagens, com uma alternância constante entre os protagonistas, o que é cansativo e causa perda de foco na leitura. Quase todos os personagens são tão secundários que é fácil perdê-los no background da história, e acabamos por considerá-los dispensáveis.
  3. Muita política. Não tenho nada contra política, acredito que o tema faz parte das nossas vidas e é muito importante, mas a autora gasta tantas páginas para tratar da aprovação de alguma projeto de lei, e perde-se de tal forma nos meandros políticos entre a União e a Aliança, que as vezes até esquecemos que estamos lendo um livro sobre clonagem. São esquemas e agendas políticas em excesso, e como praticamente todos personagens estão envolvidos até o pescoço na política é fácil perder-se em meio aos esquemas políticos.
  4. Muita falação, pouca ação. Páginas e mais páginas de discussões políticas e quase nenhuma ação.
  5. Um assassinato sem explicação. Apesar do livro ser descrito na contra capa como um “livro de mistério de assassinato”, o mistério sobre o assassinato de Ari é mal explicado, e fica a dúvida se tratou-se de um acidente ou suicídio. Apenas na sequência deste livro, Cyteen Regenesis (2009) Cherryh esclarece o mistério, mas acredito que depois de tanto tempo ninguém mais se importa com isso.

Apesar dos problemas o livro é escrito com competência, e com diálogos interessantes, apesar de cansativos. Ele é muito realista ao explorar problemas atuais na nossa sociedade, como questões éticas envolvendo clonagem e aperfeiçoamentos genéticos artificiais. Mas definitivamente não é uma leitura recomendável, mesmo para quem possui algum conhecimento do idioma inglês.
O livro poderia seguir o caminho distópico de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, mas Cherryh preocupou-se muito mais com diálogos políticos cansativos do que com as questões éticas e morais. É uma pena.

The Sword Of The Lictor (A Espada do Lictor) – Gene Wolfe

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Ficha Técnica do Livro

  1. Título: Sword & Citadel: The Second Half of The Book of the New Sun – Tetralogia do Livro do Novo Sol Volume 3
  2. Nome do autor: Gene Wolfe
  3. Nome da editora: Orb Books
  4. Data e local de publicação: EUA, 1994;
  5. Número de páginas: 416 páginas;
  6. Gênero: Fantasia Científica;
  7. Sub-Gênero: Morte da Terra (Dying Earth);
  8. Nota: ★★★★★ (5!)

A Espada do Lictor é o terceiro livro da Tetralogia do Livro do Novo Sol, escrito por Gene Wolfe em 1982. Foi indicado ao Prêmio Nebula, mas não recebeu o prêmio. Existe uma edição em português, da Editora portuguesa Europa-América, de 1985, mas é extremamente difícil encontrar uma cópia em sebos do Brasil. Após muita procura encontrei uma cópia em Portugal, através do site wook.pt, mas o fornecedor não conseguiu entregá-la. Caso você não consiga encontrar uma cópia em português recomendo a leitura desta edição em inglês, para quem tem conhecimento intermediário do idioma, pois Gene Wolfe é um escritor que merece ser lido no idioma original.

O livro continua a contar a estória de Severian, que após ser exilado da cidade de Nessus por ter demonstrado compaixão pela prisioneira Thecla, finalmente conclui sua longa jornada até Thrax, onde agora assume a posição de Lictor (ou Mestre das Correntes).
Por algum tempo Severian continua com seu ofício de torturador, mas novamente ele acaba mostrando misericórdia por outra prisioneira condenada, e com isso acaba por fugir da cidade. Uma estranha criatura conhecida como Salamandra, que é capaz de incinerar suas vítimas, aparentemente veio até Thrax para caça-lo, e após um encontro quase fatal com a criatura ele e Dorcas acabam se separando, pois sua amante que o acompanhou até Thrax acaba entrando em depressão devido ao seu passado misterioso e decide voltar para Nessus para tentar descobrir mais sobre seu passado. O jovem torturador decide seguir para o norte, onde se desenrola uma guerra, pois descobriu que as irmãs Pelerinas estariam nessa região, e por acreditar serem elas as guardiãs por direito da Garra do Conciliador,  e ele deseja retornar a inestimável relíquia com misteriosos poderes de cura para elas. A estória então segue descrevendo sua fuga de Thrax em direção à guerra que se desenrola no norte.

Mais uma vez Gene Wolfe mostra que é um dos melhores escritores vivos da língua inglesa, escrevendo uma história com uma riqueza estilística, vocabulário e dinâmica como poucos foram capazes neste gênero.
Urth (uma corruptela para Earth) é um  mundo moribundo em um futuro quase inimaginavelmente distante, e só temos informações sobre esse mundo através das reflexões de um personagem construído com muita competência ao longo dos quatro livros da série, recompensando a paciência do leitor com revelações repletas de beleza poética e magistralmente escritas. Veja alguns exemplos abaixo:

Após fugir de Thrax, ao contemplar o céu repleto de estrelas nas montanhas ao norte, Severian finalmente confirma que a humanidade realmente colonizou outros planetas, e que no passado a raça dos homens construiu uma grande civilização:

… Depois de cobrir minha cabeça com minha capa, o que fui forçado a fazer para não enlouquecer, acabo pensando nos mundos que circulam esses sóis. Todos sabemos que eles existem, muitos sendo meras planícies sem fim de rochas, outros esferas de gelo ou colinas de cinzas onde fluem rios de lava, como se afligido por Abaddon; mas muitos outros são mundos mais ou menos justos, e habitados por criaturas que ou são descendentes de criações humanas ou pelo menos não muito diferentes de nós mesmos…

Logo em seguida Severian revela que a humanidade também ocupou a Lua, e que algumas pessoas em Urth ainda tem acesso a tecnologias que foram negadas ao resto da humanidade no nosso mundo natal:

… Quando eu descobri, quando garoto, que o círculo verde na Lua na verdade é uma espécie de ilha pendurada no céu, cuja cor é devida às suas florestas, agora imemorialmente antigas, plantadas nos primeiros dias da raça dos Homens, eu tive a intenção de ir até lá, e logo adicionei a isso todos os outros mundos do universo ao descobrir sua existência. Eu abandonei esse desejo como parte (assim pensei) do crescimento, quando aprendi que apenas pessoas cujas posições na sociedade pareciam para mim inalcançavelmente elevadas eram capazes de deixar Urth.
Agora esse antigo anseio reacendeu-se, e apesar de agora parecer ainda mais absurdo com a passagem dos anos (pois certamente o pequeno aprendiz que eu fui teve mais chance de disparar entre as estrelas do que esse exilado perseguido que me tornei) ele se firmou e fortaleceu porque eu aprendi nesse meio tempo a limitar a insensatez do desejo ao possível. Eu partirei, isso está resolvido. Pelo resto da minha vida ficarei incansavelmente alerta por qualquer oportunidade, por menor que seja. Eu já me encontrei uma vez sozinho entre os espelhos do Padre Inire; então Jonas, muito mais sábio que eu, lançou-se sem hesitação na maré de fótons. Quem poderia dizer que não me encontrarei perante esses espelhos novamente? …

No capítulo XVIII Severian esclarece que o Sol de Urth está morrendo, perdendo seu brilho:

Quadros, pintados em tempos antigos, mostram que nosso sol já foi mais brilhante, mostrando que até mesmo as estrelas não podiam ser vistas até o por do sol. As antigas lendas – eu tenho um livro marrom em minha bolsa que conta muitas delas – são cheias de seres mágicos que desaparecem lentamente e reaparecem da mesma forma. Sem dúvida essas estórias são baseadas na forma como as estrelas eram vistas na época.

Mas não é apenas o Sol de Urth que está morrendo, o próprio planeta é tão velho que até seu núcleo resfriou, conforme Severian descreve no Capítulo XIII ao ver uma montanha partida:

… Em tempos antigos ‒ assim eu li em um dos textos que Mestre Palaemon enviou para mim ‒ o próprio coração de Urth já esteve vivo, e os movimentos desse núcleo vivo faziam planícies irromperem como fontes, e algumas vezes abria-se mares em uma noite entre ilhas que haviam sido um continente quando vistas pelo sol da última vez. Agora é dito que ele está morto, esfriando e enrugando seu manto rochoso como o corpo de uma mulher velha em uma dessas casas abandonadas que Dorcas descreveu, mumificando-se no ar seco até que suas roupas caiam do corpo por si mesmas. Assim é, ou é dito de Urth; e aqui meia montanha separou-se de sua outra metade, caindo pelo menos uma légua…

Gene Wolfe não explica por que Urth não congelou com a diminuição gradual do brilho do sol, o leitor pode especular à vontade. Eu acredito que a humanidade poderia ter sido capaz de aumentar a absorção de energia pela atmosfera e superfície, para compensar a redução da força do sol, antes de seu declínio tecnológico no planeta.

Uma crítica comum que tenho observado entre os leitores da obra de Gene Wolfe é a moral duvidosa que ele usa para descrever algumas ações de Severian. Por exemplo, como ele pode abandonar sua amante Dorcas em uma estalagem qualquer após ela ter um colapso nervoso e sair para uma festa onde acabou mantendo relações sexuais com uma mulher que nunca viu? Em outras oportunidades, como em A Garra do Conciliador ele também manteve relações efêmeras com outras mulheres, como Jolenta, sem se preocupar com a condição fragilizada desta ou com sua relação com Dorcas. É comum os leitores sentirem-se tentados a considerá-lo promiscuo ou pouco respeitador com as mulheres, mas acredito que o autor buscou descrever um mundo muito diferente do nosso, e aos poucos vamos percebendo que essas diferenças também deveriam estender-se às relações humanas, afinal estamos muitos milhões de anos no futuro, seria ingenuidade pensar que os nossos valores permaneceriam imutáveis. Como poderíamos julgar a moral de um personagem em um mundo tão estranho e distante no tempo se até mesmo para nós, em questão de poucas décadas, valores sociais e questões de gênero e raça podem sofrer mudanças tão drásticas?

A Espada Terminus Est

Já que o título do livro trata da espada de Severian, considero oportuno escrever algo sobre ela.

Antes de Severian partir para o exílio, Mestre Palaemon confia a ele a Terminus Est. É uma espada afiada e intimidante, que serve como símbolo de seu ofício além de ser uma arma mortal. Apesar da sua utilidade, a espada é extremamente ostentosa, pois de acordo com o narrador “muita arte foi esbanjada nela”.

Ela é descrita pelo Mestre Palaemon como sendo “Leve de se erguer, pesada para descer”, devido sua óbvia utilização para decapitações. Um canal na espinha da lâmina contém hydrargyrium líquido. Aparentemente esse líquido é mercúrio, devido suas propriedades, mas não podemos ter certeza disso. A função do hydrargyrium é deslocar o peso para a guarda da arma, quando mantida erguida acima da cabeça, para facilitar ao torturador aguardar até a ordem do magistrado de baixá-la e cortar a cabeça de um condenado, o que pode levar um tempo considerável em uma cerimônia de execução. A guarda da espada é removível, uma característica comum em espadas japonesas, e Severian por vezes remove a guarda para disfarçar a espada como um bastão de caminhada.
A Terminus Est é descrita como sendo um dos últimos trabalhos de um famoso construtor de espadas, então adicionalmente à sua utilidade ela também é uma antiguidade. Em A Sombra do Torturador, Agia diz que o valor dela é dez vezes superior a todo o estoque de sua loja.
Ela não tem uma ponta, pois não foi construída com o propósito de luta, não servindo para perfurar. Além disso o hydragyrium líquido pode causar grande desequilíbrio em movimentos laterais, por isso ela não é adequada para lutas, apenas para execuções.
A espada tem lâmina dupla, tendo um lado “macho” e outro “fêmea”, o que foi feito com o único propósito de cortar cabeças de homens e mulheres com seu respectivo lado.

Mas vamos ler como a espada é descrita no capítulo XIV de A Sombra do Torturador:

Não quero aborrecê-los com um catálogo de suas virtudes e belezas; seria necessário vê-la e empunhá-la para a julgar com justiça. A lâmina penetrante tinha uma vara de comprimento, com a ponta quadrada como compete a uma espada daquelas. Qualquer dos gumes conseguia seccionar um cabelo até um palmo do guarda-mão, que era de prata maciça, com uma cabeça esculpida em cada uma das extremidades. O punho era de ônix envolto em tiras de prata, tinha dois palmos de comprimento e terminava em uma opala. Tinha sido tratada com desvelo artístico; mas a função da arte é tornar atraentes e significativas as coisas que de outra forma não os seriam e por isso a arte nada tinha a dar-lhe. As palavras Terminus Est tinham sido gravadas sobre a lâmina em belas e curiosas letras e eu já tinha aprendido o suficiente sobre línguas antigas desde que saíra do Átrio do Tempo para saber que significavam Esta é a Linha de Divisão.
‒ Está bem afiada, garanto-te ‒ disse Mestre Palaemon, ao ver-me experimentar um dos gumes com o polegar. ‒ Em nome daqueles que possam vir a ser-te entregues, conserva-a assim. A minha única dúvida é se ela não será uma companheira demasiada pesada para ti. Ergue-a e vê.
Segurei em Terminus Est tal como fizera com a espada falsa no dia da minha ascensão e levantei-a acima da cabeça, tendo o cuidado de não bater no teto. Ela deslocou-se como se eu estivesse a lutar com uma serpente.
‒ Não tens dificuldade?
‒ Não, Mestre. Mas ela contorceu-se quando eu a equilibrei.
‒ Há um canal na espinha da lâmina no qual corre um fluxo de hydrargyrium ‒ metal mais pesado que o ferro, embora escorra como água. Assim o equilíbrio passa para junto das mãos quando a lâmina está erguida e para a ponta quando ela desce. Muitas vezes terá que aguardar que termine uma oração final ou que o inquiridor te faça um sinal com a mão. A tua espada não pode vacilar nem tremer. ‒ Mas isso tu já sabes. Não necessito recomendar-te que respeites tal instrumento. Que a Moira te seja favorável, Severian.

Severian segue fielmente o conselho de seu mestre, sendo muito meticuloso no cuidado e guarda da espada, sempre limpando, lubrificando e a afiando antes e depois de uma execução, mantendo-a tão afiada que pode utilizá-la para fazer a barba, como vemos no capítulo XIV de A Espada do Lictor, quando Severian pede abrigo em uma casa na floresta após fugir de Thrax:

… ‒ Você sempre se barbeia com sua espada? A mulher perguntou. Foi a primeira vez que ela falou comigo sem reservas.
‒ É um costume, uma tradição. Se a espada não estiver afiada o suficiente para eu me barbear com ela, eu deveria ter vergonha de portá-la. E se estiver afiada o suficiente que necessidade eu teria de uma navalha?
‒ Ainda assim deve ser estranho, segurar uma lâmina tão pesada como essa, e você deve tomar muito cuidado para não se cortar.
‒ O exercício fortalece meus braços. Além disso é bom que eu maneje minha espada a cada chance que possuo, para que ela me seja tão familiar quanto meus membros.
‒ Você é um soldado, então. Eu achava que era.
‒ Eu sou um carrasco.

Em A Espada do Lictor Terminus Est será utilizada várias vezes, e terá um destino dramático no final do livro.

Não perca minha próxima análise, A Cidadela do Autarca e a análise final de O Livro do Novo Sol!

Perdido em Marte (The Martian) – Andy Weir

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Ficha Técnica do Livro:

  1. Título: Perdido em Marte (The Martian)
  2. Nome do autor: Andy Weir
  3. Nome da editora: Arqueiro
  4. Tradutor: Marcello Lino
  5. Lugar e data da publicação: Brasil, 10/07/2014
  6. Número de páginas: 336 páginas;
  7. Gênero: Ficção Científica Hard;
  8. Nota: ★★★★ (4)

Perdido em Marte (The Martian) é um romance de ficção científica do subgênero Hard, que é um estilo de ficção focada na precisão científica. Foi originalmente publicado pelo próprio autor em 2011, sendo que em 2014 os direitos foram adquiridos por uma grande editora (Crown Publishing) que republicou o livro com grande sucesso. O livro ganhou projeção após ser divulgado que Ridley Scott irá filmar a estória, com Matt Damon no papel principal, e o lançamento será ainda neste ano! Para mais informações confira este link para o IMDB.

Post atualizado, agora já temos o trailer! (19/08/2015)

O livro conta a estória do astronauta Mark Watney, um botanista e engenheiro mecânico que é deixado para trás logo no início da terceira missão tripulada à Marte, a Ares 3, que foi forçada a evacuar devido a uma forte tempestade. Seus companheiros o julgaram morto devido a uma antena ter perfurado seu traje EVA, o que foi confirmado pelos monitores de dados vitais de seu traje. Na verdade seu ferimento não foi muito grave, e o traje foi capaz de vedar o vazamento antes de perder muita pressão. Watney acaba ficando para trás, sem comunicação com o resto da equipe ou com a NASA, precisando contar apenas com suas habilidades técnicas e científicas para sobreviver com os recursos limitados que dispõe até a próxima missão Ares, e assim ter alguma chance de resgate.

Mark Watney revela-se uma pessoa cheia de recursos, com uma criatividade e capacidade de lidar com adversidades totalmente fora dos padrões. Ele é uma espécie de MacGyver que é capaz de consertar qualquer coisa com um pouco de fita adesiva, pedaços de lixo e o que mais conseguir obter.

O autor pretendeu mostrar um personagem que nunca se deixa abater, com um bom humor tão fora do padrão quanto suas habilidades para sobreviver. Mas, na minha opinião, aqui o autor exagera um pouco, e mostra o diário de Watney mais como um blog nerd do que um drama de sobrevivência. Praticamente não existe nenhum momento traumático, e o tempo todo o astronauta faz trocadilhos e piadinhas infantis, como substituir uma unidade de medida de energia que considera sem graça por “pirata-ninja”, faz piadinhas com emoticons ao fazer contato com a NASA (veja só, um par de peitos! (.Y.)). Sinceramente, as piadas são mais embaraçosas do que engraçadas. Não importa o tamanho da desgraça, ou quanto a situação seja desesperadora, Watney insiste em fazer piadas e comentários ridículos, minimizando o tempo todo a tensão que seria característica em um livro de sobrevivência. Watney é um personagem unidimensional, sem nenhuma profundidade psicológica, mesmo passando por situações traumáticas como quase morrer várias vezes e ter sido abandonado em outro planeta.

 Apesar disso, Andy Weir é um excelente escritor técnico, bastante detalhista ao descrever as ações de Watney para criar e reciclar água e ar, para criar solo para cultivar batatas, e adaptar o veículo espacial e o habitat para os mais diversos fins. No subgênero Ficção Científica Hard essa familiaridade com a ciência é muito importante, e sem dúvida é o ponto forte do livro.

Talvez o autor tenha tentado aproximar o livro da linguagem dos jovens, ou facilitar a leitura, mas considero muito desagradável um personagem fazer algum comentário sarcástico e logo depois explicar: sim, isso é sarcasmo. Uma piada que precisa de legenda ou trata-se uma piada ruim ou o autor considera que o leitor não possui inteligência suficiente para entende-la. É lamentável.

Mesmo assim ainda assim considero esse livro uma gratificante novidade na ficção científica, e recomendo sua leitura. Apenas considero que teria sido um livro bem melhor se fosse um pouco menos nerd e um pouquinho mais dramático.

The Uplift War (A Guerra da Elevação) – David Brin

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Ficha Técnica do Livro:

  1. Título: The Uplift War (A Guerra da Elevação) – Uplift #3
  2. Nome do autor: David Brin
  3. Nome da editora: Bantam Spectra
  4. Lugar e data da publicação: Eua, 1987
  5. Número de páginas: 294 páginas;
  6. Gênero: Ficção Científica;
  7. Nota: ★★ (3)

The Uplift War (A Guerra da Elevação) é um romance de ficção científica escrito em 1987 por David Brin, e o terceiro livro do Universo Elevação que é composto por seis livros. O livro foi indicado ao Prêmio Nebula de melhor romance em 1987 e venceu os prêmios Hugo e Locus de melhor romance em 1988.
Os dois livros anteriores, Sundiver e Star Tide Rising, conforme escrevi nas análises anteriores, para mim foram desapontadores, o primeiro por ter sido conduzido de forma ingênua, com personagens fracos e pouco envolventes. O segundo, apesar de ter recebido vários prêmios, também foi desapontador devido ao uso de uma estrutura de narrativa rotativa com capítulos muito curtos com quebra constante de ritmo, uma falha estilística que considerei grave. Infelizmente David Brin manteve o mesmo estilo nesse livro, insistindo na rápida alternância entre os personagens o que liquidou com o ritmo do livro.

Ainda encontramos capítulos muito curtos, com mais de um capítulo por página, alguns capítulos com menos de 3 sentenças, o que produziu absurdos 111 capítulos! Por que dividir o livro em sete partes? E por que a parte sete teria apenas um  capítulo? Por que não chamar o último capítulo de epílogo? Apesar de alguns capítulos serem mais longos, muitas vezes ele perde tempo em trechos desnecessários (como o capítulo 24, que descreve um bar de stripers tão repleto de clichés que parece ter saído de algum filme de faroeste, só que com atores chimpanzés).

Apesar do título mencionar uma guerra, não se trata de uma ficção científica militar. Sim, trata-se de uma guerra, mas o foco da história mais uma vez é a Elevação de espécies à condição de senciência e não a guerra em si. Assim como nos livros anteriores, David Brin fez um bom trabalho na sua construção dos Galáticos. Cada raça alienígena possui uma cultura própria, cheia de peculiaridades, algumas curiosas, outras até mesmo bizarras. Os Gubru, por exemplo, que iniciam o ataque à colônia de terrenos (humanos e chimpanzés) em Garth, são descritos como algo parecido com passarinhos superdesenvolvidos, que possuem uma atitude guerreira que não combina com sua aparência (assim como os Angry Birds). Pode parecer ridículo, mas o resultado é genial, pois ao fugir do estereótipo da ficção científica, que insiste em retratar raças alienígenas agressivas como algo parecido com felinos ou outras raças predadoras, o autor acaba surpreendendo o leitor com sua guerra contra os Angry Birds.

Os Tymbrini são umas das poucas espécies galáticas aliadas dos terrenos, e foram maravilhosamente construídos pelo autor. A capacidade de adaptação dos Tymbrini permite que eles executem alterações fisiológicas e anatômicas drásticas, e como empatas são capazes de comunicar-se mentalmente percebendo coisas que os terrenos não podem ver. Além disso surge um interessante caso amoroso entre um humano e uma tymbrini, que leva os leitores a considerar o que poderia acontecer com uma integração intensa entre espécies tão diferentes.
A estória acontece em Garth, um planeta arrendado pela Terra para um esforço de recuperação do planeta após o desastre ecológico causado por uma espécie elevada que falhou miseravelmente e quase destruiu completamente a vida do planeta.
Os Gubru estão determinados em descobrir o que aconteceu com a espaçonave Streaker (veja minha análise), então eles iniciam uma guerra dentro das regras galáticas, mas conforme mencionei anteriormente a guerra em si não é o mais interessante, mas sim o que é descrito paralelamente.
No livro anterior o autor ocupou-se em descrever os golfinhos elevados, com o foco principalmente em sua linguagem, pois tratava-se de uma população restrita à tripulação da nave Streaker. Já neste livro ele conseguiu descrever melhor a sociedade dos chimpanzés em Garth, que mostra uma semelhança maior com os seres humanos.
Apesar de começar bem, o autor perdeu a mão mais uma vez em Uplift War, insistindo na alternância constante na narrativa, muitas vezes com capítulos desnecessários e sem importância. Mais uma vez David Brin mostra que não é um bom escritor, apesar de possuir uma imaginação privilegiada.

Startide Rising (Maré Alta Estelar) – David Brin

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Ficha Técnica do Livro:

  1. Título: Startide Rising – Uplift #2 – (Maré Alta Estelar)
  2. Nome do autor: David Brin
  3. Tradutor: Maria Helena Fernandes
  4. Nome da editora: Editora Europa-América, coleção Livros de Bolso FC n° 116 e 117;
  5. Lugar e data da publicação: Portugal, 1986
  6. Número de páginas: 294 páginas;
  7. Gênero: Ficção Científica;
  8. Nota: ★★ (3)

Startide Rising (Maré Alta estelar) é o segundo livro da trilogia Uplift (Elevação), de David Brin. Foi escrito em 1983 e recebeu o prêmio Nebula no mesmo ano, e os prêmios Hugo e Locus de 1984, sendo portanto um dos poucos livros laureados com os três maiores prêmios da ficção científica. Existe uma edição em português, mas infelizmente é muito difícil de encontrá-la em sebos. Se você está procurando este livro recomendo tentar no site Estante Virtual. Para piorar a situação, o livro foi publicado em dois volumes, e só encontrei uma cópia do segundo volume, portanto tive que ler o primeiro em inglês.

Veja minha análise de Sundiver antes de prosseguir (o link abrirá em uma nova janela).

A ordem cronológica da série é a seguinte:

Observação: (A leitura de Sundiver pode ser considerada uma boa introdução ao universo Uplift, mas não é obrigatória. Muitos consideram que a série inicia efetivamente em Startide Rising)

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 O ano é 2489. A história começa cerca de um mês após a espaçonave terrena Streaker (com uma tripulação de 150 golfinhos, sete humanos e um chimpanzé) realizar a descoberta de uma frota abandonada que supostamente teria pertencido aos Progenitores, uma lendária raça que teria iniciado o processo de elevação de outras espécies. A origem, história e destino dos Progenitores é um dos maiores mistérios da galáxia. Um transporte da Streaker foi destruído ao investigar a frota abandonada, matando vários membros da tripulação. Apesar disso eles conseguiram recuperar alguns artefatos e um corpo de uma espécie alienígena desconhecida, mas muito bem preservado. Eles transmitem por psi-cast para a Terra informações sobre a descoberta e um holograma do corpo do alienígena. A resposta, enviada em código, dizia simplesmente “Fujam. Aguardem ordens. Não respondam”. Durante a fuga a Streaker é emboscada em um Ponto de Transferência Morgan, consegue fugir mas sofre várias avarias e acaba sendo obrigada a pousar no planeta aquático Kithrup.
Os alienígenas que estão perseguindo a Streaker são conhecidos como Galáticos — civilizações que conquistaram a inteligência milhares de anos antes dos humanos. A narrativa inicia-se então em meio a uma luta feroz entre os galáticos para decidir quem irá ficar com as informações e artefatos dos Progenitores, enquanto a tripulação da Streaker irá realizar uma tentativa desesperada de reparar a nave em um ambiente alienígena hostil e cheio de mistérios.

A estória é contada pelo ponto de vista dos personagens humanos, golfinhos elevados e até mesmo do ponto de vista de outras espécies dos Galáticos. Para os golfinhos o autor desenvolveu um padrão de linguagem no estilo Haiku, uma forma de poesia japonesa curta caracterizada pela justaposição de duas ideias, com 17 on (também conhecido como mora, ou algo como as nossas sílabas) divididas em três frases com 5, 7 e 5 ons.  O resultado é no mínimo curioso. A Streaker, foi adaptada para comportar uma tripulação em sua maior parte de golfinhos, com ambientes aquáticos, mas os golfinhos também podem circular entre outros compartimentos e comunicar-se com humanos em chimpanzés utilizando exoesqueletos conhecidos como aranhas.

A imaginação de David Brin é realmente impressionante, e seu rigor científico permite algumas postulações aceitáveis do ponto de vista tecnológico. A comunicação entre as espécies humanas, golfinhos e chimpanzés, bem como a interação entre eles é bastante convincente. Por exemplo, a Streaker é a primeira nave terrestre a ser capitaneada por um golfinho, o capitão Creideiki, portanto ele demonstra estar sob pressão devido sua responsabilidade em provar tanto aos humanos quanto aos outros de sua espécie que eles são totalmente capazes de cuidar de si mesmos. Os humanos também lidam com suas próprias preocupações e frustrações, bem como algum romance entre eles. O único chimpanzé à bordo é ranzinza e egoísta. Nos capítulos mostrados do ponto de vista dos Galáticos podemos notar um nítido sentimento de desdem e superioridade em relação aos humanos e as outras duas espécies terrenas patrocinadas por nós.

A estrutura rotativa da narrativa, alternando entre os pontos de vistas conforme muda o narrador,  é um recurso valioso e vários livros que já li fizeram excelente uso dessa técnica, mas David Brin pecou na brevidade desses capítulos. Os capítulos são tão curtos (alguns têm menos de uma página, ou até mesmo apenas poucas sentenças) que dificilmente permitem ao leitor acostumar-se ao novo ponto de vista. A narrativa acabou ficando cheia de saltos, o que prejudica a conservação do momemtum (ritmo) na leitura, deixou a narrativa confusa e à todo momento Brin joga um balde de água fria nos momentos onde a estória começava a ficar interessante.

Apesar de apresentar vários problemas, Maré Alta Estelar ainda pode ser considerado um grande livro, escrito dentro do melhor da tradição do gênero: mostrando o impacto que a ciência e tecnologia produzem sobre a humanidade.

Recomendo a leitura, mas apenas para fãs do gênero.

 

Laranja Mecânica – Anthony Burgess

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Ficha Técnica do Livro

  1. Título: Laranja Mecânica (A Clockwork Orange)
  2. Nome do autor: Anthony Burgess
  3. Tradutor: Fábio Fernandes
  4. Nome da editora: Editora Aleph
  5. Data e local da primeira publicação: Inglaterra, 1962;
  6. Número de páginas: 192 páginas;
  7. Gênero: Romance Distópico;
  8. Sub Gênero: Ficção Científica Social;
  9. Nota: ★★★★★(5)

Laranja Mecânica (A Clockwork Orange) é um romance distópico escrito por Anthony Burgess em 1962, e adaptado por Stanley Kubrick para o cinema em 1971. É considerado um dos melhores romances da língua inglesa já escritos (nº 65 no ranking da Modern Library) tendo influenciado de forma considerável a cultura popular da segunda metade do século. É um livro relativamente difícil de ler, principalmente devido ao uso intensivo de gírias e neologismos que exigem atenção do leitor para entendê-las junto ao contexto, ou então consultas constantes à um glossário presente no final do livro.
O filme de Kubrick é considerado uma obra prima do cinema, e uma excelente adaptação da obra de Burgess, mesmo considerando que o roteiro foi baseado na edição americana, onde o último capítulo foi excluído da adaptação. O próprio Burgess criticou a remoção do último capítulo, mas considero a crítica injusta pois a edição americana foi autorizada por Burgess que cedeu à pressão dos editores americanos que achavam que o personagem principal não deveria passar por nenhum tipo de redenção devido aos crimes cometidos, tendo então concordado com a remoção do capítulo final. Por sua vez, Kubrick disse que só leu a versão original após ter concluído o roteiro do filme, e que considerava o último capítulo como um “capítulo extra” inconveniente e inconsistente com o restante do livro, e não gostava da visão do autor para a conclusão da história. Eu concordo com a opinião de Kubrick, também considero que o capítulo final é um tanto desnecessário, mas, polêmicas à parte, tanto o livro quanto o filme são geniais e merecem nossa atenção.

Uma breve análise do livro

  • Contexto da época
    Burgess escreveu o livro após retornar ao Reino Unido depois de uma longa estada no exterior, quando percebeu que a sociedade britânica passava por várias mudanças. Os jovens estavam desenvolvendo uma cultura permeada por música pop e comportamento radical, muitas vezes reunindo-se em gangues. O temor na Inglaterra era de que a delinquência juvenil começasse a sair de controle. Além desses fatores sociais da época, Burgess também foi influenciado pelo estupro de sua primeira esposa durante a Segunda Guerra Mundial por um grupo de soldados americanos bêbados. Burgess também afirmou que seu livro é uma crítica ao Behaviorismo (ou comportamentalismo), um conjunto de teorias que postula que o comportamento é o objeto de estudo mais adequado na psicologia.
  • Estilo
    Sem dúvida uma das coisas mais interessante e dignas de nota em Laranja Mecânica é o estilo único e inteligente empregado por Burgess. O livro foi escrito numa espécie de dialeto do inglês inventado pelo autor, o nadsat, que é falado pelos delinquentes. O vocabulário utilizado foi baseado na língua russa e no cockney, que é uma palavra utilizada para descrever os habitantes da zona leste de Londres, que possuem um dialeto e sotaques diferentes do restante dos londrinos, além do costume de expressarem-se em calão rimado, que faz um jogo de palavras com um caráter irônico e muitas vezes difícil de compreender até mesmo pelos demais londrinos. Acredita-se que o calão rimado surgiu entre os feirantes e pequenos criminosos nos fins do século XIX para dissimular suas atividades pouco lícitas do público geral e da polícia. Mais informações sobre calão rimado podem ser encontradas aqui. Alguns exemplos de expressões cockney em calão rimado:

    “Can you Adam and Eve it?” (Adam and Eve it = believe it)  → Você acredita nisso?
    “Use your loaf and think next time” (loaf of bread = head) → Use a cabeça e pense da próxima vez.
    “Hello me old china” (china plate = mate)  → Olá amigo.
    “Are you telling porkies?” (porkies = pork pies = lies) → Você está mentindo?
    “That’s an expensive looking whistle” (whistle and flute = suit) → Essa é uma roupa cara.

    O próprio título pode ter sido inspirado em uma expressão expressão cockney, As queer as a clockwork orange, que pode ser traduzido como “Tão estranho quanto uma laranja mecânica”. (No entanto, existem outras teorias para explicar o título, talvez essa não seja a correta, mas não vou me estender nessa polêmica!)
    Alex, o narrador da história, nunca tenta embelezar ou produzir efeitos dramáticos, ele nitidamente não está preocupado em chocar o leitor com seus atos de violência muito menos em tenta justificar suas ações, o que pode inicialmente parecer frieza dele, mas que podemos também encarar como um exemplo de sua honestidade (mesmo que seja para praticar atos violentos e deploráveis). Alex chega ao ponto de narrar os atos de violência com muitos detalhes, explicando quais golpes está desferindo em suas vítimas, ou quanto sangue está conseguindo tirar delas.
    Muito do tom do livro soa irreverente e imaturo, o texto está repleto de gírias e onomatopeias o que é um reflexo imaturidade do personagem. Podemos detectar uma nota extremamente sutil de angústia, como se Alex estivesse preso à um círculo vicioso e já tivesse aceitado sua situação no mundo em que vive sem questionamentos ou remorsos, o que fica acentuado após o tratamento que recebeu na prisão que o “curou” da violência.
    Uma prova do quanto Burgess é inteligente no uso do nadsat pode ser lido na segunda sentença do primeiro capítulo:

    “There was me, that is Alex, and my three droogs, that is Pete, Georgie, and Dim, Dim being really dim, and we sat in the Korova Milkbar making up our rassoodocks what to do with the evening, a flip dark chill winter bastard though dry”

    (Éramos eu, ou seja, Alex, e meus três druguis, ou seja, Pete, Georgie e Tosko, Tosko porque ele era muito tosco, e estávamos no Lactobar Korova botando nossas rassudoks pra funcionar e ver o que fazer naquela noite de inverno sem vergonha, fria, escura e miserável, embora seca.)

    Apenas pelo contexto, podemos inferir que druguis significa amigos e rassudok significa pensar, ou planejar. No entanto na versão original em inglês também podemos ver um experto jogo de palavras, uma associação livre de palavras sobre como eles deveriam estar sentindo-se quanto à noite de inverno, mas que na tradução a associação de palavras foi explicada, numa tentativa de facilitar a leitura ou por simples falha do tradutor. Dim, traduzido como Tosko em português (ou Tapado, como encontrei em outras edições), na verdade seria algo como turvo, ou embaçado, sendo que a associação à condição intelectual do amigo de Alex é um tanto mais sutil em inglês. Portanto, parte da genialidade de Burgess perde-se na tradução, o que é triste mas nada muito grave para os leitores das edições traduzidas.
    Para quem não tem muita paciência para decifrar o contexto, a utilização do glossário no fim do livro pode ajudar bastante, pelo menos inicialmente até que o leitor assimile o novo vocabulário, no entanto esse glossário não fazia parte da obra original de Burgess, tendo sido incluído na edição americana de 1963 devido à pressões editoriais. A intenção do autor era justamente criar uma forte sensação de estranhamento, jogando o leitor de forma súbita em um universo jovem, violento e de difícil compreensão.

  • Simbolismos
    Todo o livro é permeado por simbolismos que giram em torno do tema da liberdade de escolha, do livre arbítrio. A trama, a caracterização dos eventos, o discurso de Alex, tudo que está no livro gira em torno da livre arbítrio. Isso fica mais evidente quando Alex inscreve-se no tratamento Ludovico, e com isso abandona sua liberdade de pensamento em troca da oportunidade de reinserir-se na sociedade, e claro, ele irá se arrepender de abdicar de sua liberdade de pensamento.
    O nadsat também pode ser visto como um simbolismo ligado à liberdade e imaturidade da juventude. No último capítulo, quando Alex reencontra um antigo drugue e companheiro de ultraviolência percebemos que ele abandonou o uso do nadsat, e começou a falar como um adulto, o que é uma amostra do simbolismo entre nadsat e imaturidade.
    O próprio número de capítulos, 21, é um simbolismo para indicar a idade em que alguém tornaria-se um adulto.
    Todo esse simbolismo desempenha um papel essencial no livro, e certamente Anthony Burgess inseriu-o de forma a possibilitar que qualquer leitor identifique a mensagem, não é um simbolismo oculto, a mensagem do autor é clara.

Um clássico da literatura inglesa, que gerou um dos melhores filmes do século passado, Laranja Mecânica é uma excelente obra, uma ficção social cujos temas abordados continuam atuais mesmo no nosso tempo: violência gratuita e deliberada, uma sociedade que prefere afastar os jovens ou lobotomizá-los à tentar reinseri-los no convívio social, a tentativa de buscar de uma cura para a violência através da criação de robôs morais, além da hipocrisia dos pais e educadores ao absterem-se da responsabilidade na criação de seus filhos. Por esses motivos, e também pela forma extremamente inteligente como Burgess escreveu o livro com um estilo único, recomendo sua leitura!

A Garra do Conciliador – Gene Wolfe

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Ficha Técnica do Livro

  1. Título: A Garra do Conciliador (Tetralogia do Livro do Novo Sol #2)
  2. Nome do autor: Gene Wolfe
  3. Tradutor: Maria de Lourdes Medeiros
  4. Nome da editora: Publicações Europa-América
  5. Data e local de publicação: Portugal, 1981;
  6. Número de páginas: 272 páginas;
  7. Gênero: Fantasia Científica;
  8. Sub-Gênero: Morte da Terra (Dying Earth);
  9. Nota: ★★★★★ (5!)

A Garra do Conciliador (The Claw of the Conciliator) é o segundo livro da tetralogia do Livro do Novo Sol, de Gene Wolfe. Recebeu os prêmios Nebula em 1981 e o Locus em 1982. Narrado em primeira pessoa, o livro dá continuidade no relato da história de Severian, um exilado da Ordem dos que Procuram a Verdade e a Penitência (Ordem dos Torturadores), descrevendo sua viagem ao norte em direção à cidade de Thrax. No Brasil Gene Wolfe é um ilustre desconhecido, nunca um livro seu foi publicado por aqui. Existe uma edição da Publicações Europa-América, mas infelizmente é muito difícil encontrar um exemplar em sebos brasileiros.
Se você gosta de George R. R. Martin, já leu todos os livros das Crônicas de Gelo e Fogo, já assistiu várias vezes a série da HBO e está apenas aguardando que o Sr. Martin termine logo a série, dou uma dica para você: Considere ler os livros de Gene Wolfe! São várias as razões que justificam que se invista nessa série.
Em primeiro lugar, e o que é uma grande vantagem, a série de Gene Wolfe está completa. São doze livros excelentes que podem garantir a você meses ou até mesmo anos de diversão e deslumbramento com a riqueza do trabalho do autor.
Em segundo lugar, como já disse no meu post anterior, Gene Wolfe é um dos melhores autores da literatura inglesa atual. Seus livros são profundos, complexos e fantásticos muito além do que eu poderia descrever aqui.

Mas a obra de Gene Wolfe não é uma leitura fácil. O leitor deve permitir que o narrador apresente o seu mundo, não se deve criar expectativas ou tentar imaginar o mundo que ele criou antes da hora certa. Se você fizer isso muito provavelmente irá decepcionar-se com o autor. A narrativa em primeira pessoa é convincente, mas segue o ritmo determinado pelo narrador, exigindo que o leitor enxergue o estranho mundo de Urth através dos olhos de Severian, e se você deixar que ele conte sua história, sem criar falsas expectativas, será recompensado por uma das histórias mais estranhas, surpreendentes e convincentes de todo universo da ficção fantástica e científica.

Em A Garra do Conciliador podemos encontrar uma nítida referência à mitologia criada por H. P. Lovecraft, quando Severian ao entrar na caverna dos híbridos símios-humanos (ou humanos degenerados) consegue dominá-los com a Garra do Conciliador, mas assusta-se com passos de alguma criatura gigantesca nas profundezas da terra. Mais tarde, conversando com seu amigo Jonas, ele menciona os monstros gigantescos Erebus e Abaia, criaturas tão grandes quanto montanhas que viveriam nas profundezas do mar. Severian teme o retorno das criaturas, mas Jonas o lembra que são criaturas tão grandes que não poderiam conter o próprio peso, confirmando um sonho que Severian teve anteriormente. Erebus é o vulcão extinto da Antártica em que os exploradores do livro As Montanhas da Loucura de Lovecraft , encontram a misteriosa criatura da raça dos antigos. Já Abaia, a outra criatura citada, é uma criatura da mitologia Melanésia, uma enguia gigante capaz de causar grande destruição ao produzir ondas gigantes com sua cauda.

Outra referência mitológica neste livro (mas dessa vez à mitologia grega) é a história que Severian lê para seu amigo Jonas mais tarde, enquanto ele está convalescendo. É A História do Estudante e do Filho, que Jonas reconhece como sendo a história de Teseu e do Minotauro: Era exigido que a cada nove anos sete rapazes e sete garotas fossem enviados para serem devorados pelo Minotauro.
Decidido a acabar com isso Teseu se ofereceu para matar o monstro de Minos, prometendo a seu pai, Egeu, que ordenaria que o navio que o traria de volta erguesse velas brancas em caso de sucesso, ou negras caso ele tivesse morrido. Após matar o monstro o herói esquece de erguer as velas brancas e seu pai, ao ver as velas negras imagina que seu filho morreu então se arremessa ao mar e morre, e desde então o mar leva o nome de Mar Egeu. No futuro longínquo de Urth toda história e mitologia da Terra sofreram profundas transformações, mas na essência podemos notar a permanência dos elementos principais. Jonas mostra conhecer muito mais do passado de Urth que supúnhamos até então, e mais à frente veremos que Jonas não é um simples homem com alguns implantes biônicos.

Um trecho estranho do livro envolve uma chocante cerimônia (uma comunhão?) onde Severian, Vodalus e outros de seu grupo consomem carne do corpo de Thecla, após a utilização de uma droga extraída de uma glândula de uma misteriosa criatura, e com isso adquire muitas das memórias de Thecla e de sua vida na Casa Absoluta, a sede do governo do Autarca.
A Garra do Conciliador é um estranho artefato, que acaba em poder de Severian por acidente mas este logo percebe que a Garra pode ser utilizada para curar doentes, reparar ossos quebrados, afugentar animais selvagens ou até domar touros bravos!
Em A Espada do Lictor, no capítulo XVII, Gene Wolfe chama a Garra do Conciliador de gegenschein do Novo Sol:

A pedra brilhou na luz do sol, mas seu brilho era mero reflexo do sol e não a Luz do Conciliador, o gegenschein do Novo Sol, e então eu a guardei novamente.

Gegenschein é um termo alemão para um efeito astronômico também conhecido como brilho de oposição. É uma mancha elíptica de luz, oposta ao sol no céu, muito mais sutil e difícil de se observar do que a Luz Zodiacal. É causada pelo espalhamento da luz solar pelas partículas interplanetárias de poeira. Gene Wolfe, dessa forma, associa a luz do artefato com a possibilidade de um Novo Sol para Urth, sendo o brilho da pedra uma espécie de reflexo sutil dessa luz prometida.

Para quem deseja iniciar a leitura em inglês, os livros podem ser encontrados na Amazon através dos links abaixo. Desejo boa sorte para quem tentar garimpar a edição portuguesa nos sebos brasileiros, não será uma tarefa fácil! Um bom começo é tentar o site Estante Virtual. É confiável, já comprei dezenas de livros através dele e nunca tive problemas, mas hoje existe apenas uma cópia de A Cidadela do Autarca disponível.

O Livro do Novo Sol (Book of the New Sun)

Book of the Long Sun

Book of the Short Sun

A história independente que Severian conta em A Garra do Conciliador, “A História do Estudante e do Filho,” foi publicada de forma independente e separada na revista The Magazine of Fantasy & Science Fiction, October 1981.

A Sombra do Torturador – Gene Wolfe

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Ficha Técnica do Livro

  1. Título: A Sombra do Torturador (Tetralogia do Livro do Novo Sol #1)
  2. Nome do autor: Gene Wolfe
  3. Tradutor: Maria de Lourdes Medeiros
  4. Nome da editora: Publicações Europa-América
  5. Data e local de publicação: Portugal, 1981;
  6. Número de páginas: 280 páginas;
  7. Gênero: Fantasia Científica;
  8. Sub-Gênero: Morte da Terra (Dying Earth);
  9. Nota: ★★★★★ (5!)

Estamos convencidos de que inventamos os símbolos. A verdade é que são eles que inventam a nós. Somos criaturas suas, moldados por suas arestas fortes e incisivas.

A Sombra do Torturador (The Shadow of the Torturer) é o primeiro livro da Tetralogia do Livro do Novo Sol, de Gene Wolfe. É considerado por muitos um dos melhores livros de Fantasia Científica já escritos, um gênero que combina elementos da ficção científica com a fantasia. Este primeiro volume relata a história de Severian, um aprendiz na Ordem dos que Procuram a Verdade e a Penitência (a Ordem dos Torturadores) e os eventos que o levaram à sua expulsão da Ordem e sua jornada para fora de sua cidade natal de Nessus. O estilo é o da narrativa em primeira pessoa, onde Severian – que alega possuir uma memória eidética (fotográfica) – conta sua história situada em um futuro muito distante, quando o Sol enfraqueceu transformando a Terra em um mundo frio e moribundo. Os livros dessa série são os seguintes:

  1. A Sombra do Torturador (The Shadow of the Torturer);
  2. A Garra do Conciliador (The Claw of the Conciliator);
  3. A Espada do Lictor (The Sword of the Lictor);
  4. A Cidadela do Autarca (The Citadel of the Autarch);
  5. Urth do Novo Sol (The Urth of the New Sun) – Este último é uma espécie de epílogo para a história de Severian.

Gene Wolfe (83 anos) não é um autor de best-sellers, fato que explica o completo desprezo das editoras brasileiras. Apesar disso ele é muito elogiado pela crítica e é reconhecido no meio literário como um dos maiores escritores vivos da língua inglesa, dono de uma prosa densa, rica em elementos alusivos e sem apego à convenções de gêneros literários. Neil Gaiman o considera possuidor de um “intelecto feroz”, Swanwick disse que Wolfe é “o maior escritor da língua inglesa vivo atualmente” e Disch considerou O Livro do Novo Sol como “uma tetralogia sofisticada, inteligente e suave.”
Os quatro volumes do Livro do Novo Sol são povoados por referências e metáforas cristãs, especialmente católicas – Gene Wolfe é um católico praticante – mas o leitor não precisa conhecer nada de teologia para aproveitar o livro pois essas referências ficam restritas ao background da história.
Um exemplo do uso de símbolos e referências católicas neste livro é o de Santa Catarina de Alexandria que foi presa por censurar a perseguição aos cristãos pelo imperador Maximino Daia. O imperador convocou 50 dos maiores sábios do mundo para convencê-la de que ela estava errada, e que deveria negar o Deus dos cristãos. Mas os argumentos de Catarina era tão eloquentes e convincentes que foi ela quem acabou convertendo os sábios ao cristianismo. Após a tortura Santa Catarina foi decapitada tornando-se uma das maiores mártires do católicos. Ironicamente a santa é apresentada como a padroeira dos Torturadores, e Severian, assim como os sábios da lenda católica, acaba traindo sua Ordem ao mostrar misericórdia à uma exultante da nobreza geneticamente alterada de Urth. Essa “traição”, acaba levando à jornada do exílio de Severian.

Antes de ser expulso para o exílio na longínqua cidade de Thrax, ele recebe de seu mestre a espada Terminus Est, uma impressionante espada, com a ponta quadrada, guarda mão de prata com duas cabeças entalhadas, punho de onyx com fita de prata e uma opala na ponta. As palavras Terminus Est gravadas em sua lâmina significam Esta é a Linha de Divisão. No meio da lâmina existe um canal por onde corre um metal líquido chamado de hidrargiro, mais pesado que o ferro, e que ao erguer a espada acima da cabeça desloca-se para a próximo do punho, e ao descer a espada desloca-se para a ponta, auxiliando o executor a manter o equilíbrio caso seja necessário manter a espada erguida durante muito tempo até o término de uma oração ou a ordem de um inquiridor.

Abro um parênteses para comentar algo sobre o sub-gênero dessa história, o pouco conhecido Morte da Terra (tradução livre de Dying Earth) que difere do popular sub-gênero pós-apocalíptico por não tratar de uma destruição catastrófica, mas sim de uma exaustão entrópica da Terra. O primeiro livro desse gênero foi Le Dernier Homme (1805) que narra a história de Omegarus, o Último Homem na Terra, que mostra uma visão de futuro onde a Terra tornou-se completamente estéril. Outros autores modernos também escreveram excelentes livros nesse sub-gênero, como Arthur C. Clarke em A Cidade e as Estrelas (1956) e George R. R. Martin em Morte da Luz (1977).

A edição portuguesa, possui alguns erros de tradução e vários erros tipográficos, além de não possuir o apêndice que existe na edição em inglês: Social Relationships in Commonwealth. Esse apêndice apresenta, de forma sucinta, a curiosa divisão da sociedade de Urth (uma corruptela para Earth) em sete grupos básicos, entre eles: exultantes, armigers, optimates, religious, pelerines e cacogens. Mais tarde descobrimos que existem mais de 135 classes na complexa sociedade de Urth, algumas com números muito reduzidos como a dos Conservadores, responsáveis pela conservação dos livros da biblioteca de Nessus e manutenção do Jardim Botânico, uma espécie de museu vivo com ecossistemas há muito tempo extintos. Em meio à narrativa podemos entender melhor os papéis desses grupos e é fascinante como o autor consegue apresentar essa estranha sociedade de forma natural e convincente, utilizando-se da visão de Severian, agudamente sensível às impressões do mundo exterior, propiciando uma narrativa extraordinariamente enriquecida pelas reflexões do seu narrador.

É um livro extremamente difícil de encontrar no Brasil e em Portugal, pois existem poucas cópias no mercado de usados. Após buscas exaustivas localizei todos os livros da série: A Sombra do Torturador (Livraria Traça, R$23,27), A Garra do Conciliador (Estante Virtual, R$26,42), A Cidadela do Autarca (Estante Virtual, R$45,16), e o mais difícil de encontrar foi A Espada do Lictor (wook.pt, R$96,86 já incluindo o frete internacional).

Muito mais que uma simples fantasia épica, O Livro do Novo Sol é uma obra como poucas, escrita com qualidades estilísticas inquestionáveis que criaram um mundo cruel mas ao mesmo tempo fascinante e merecedor de nossa atenção. Se você tiver sorte de encontrar esse livro não pense duas vezes, é um livro obrigatório para qualquer estante de ficção!